Macambúzio
Eu tinha seis anos e uma timidez paralisante. Morava no Tatuapé e era alfabetizado na Penha, na zona leste de São Paulo. Ia e voltava num ônibus escolar, daqueles que tinham uma porta só, na frente, ao lado do motor barulhento. Não os vejo mais nas ruas. Foram fracionados em vans coreanas.
Num trajeto de ida, eu já estava num banco, quieto como uma ostra, quando entrou no ônibus um garoto branquinho e sardento, do meu tamanho. Sentou-se ao meu lado e começou a tagarelar. Contou uma piada e eu sorri. Contou outra, sorri de novo. Contou uma terceira piada que eu nem ouvi, enquanto revirava a memória, à procura de algo engraçado para retribuir.
Ele terminou a terceira história e eu emendei, orgulhoso, o que me ocorreu de mais hilariante. Tinha ouvido de minha irmã mais velha:
- Meu amor, minha vida, minha privada entupida!
O garoto ergueu as sobrancelhas, arregalou os olhos e levou uma das mãos à boca. Ele, escandalizado. Eu, petrificado. O ronco do ônibus, amplificado, ensurdecedor.
- Eu vou contar para a Diretora que você disse isso!
Entrei em pânico. Ele notou.
- Se você não me der uma bala eu vou contar para a Diretora! - ameaçou.
A chantagem foi enfática e imediata. Eu não tinha a bala. Nem o dinheiro. Prometi entregar o produto extorquido no dia seguinte. E cumpri. Fiz isso mais vezes, nos dois ou três dias que vieram depois.
Mas, em casa, à noite, aos olhos de meu pai, minha introspecção tornou-se um mistério que nem a timidez explicava. Eu não contei nada, constrangido com a barbaridade que tinha proferido a um colega. E das consequências desastrosas que aquilo teria se chegasse aos ouvidos da Diretora. Meu pai:
- Cuco (é como me chama), você anda meio macambúzio (é como se refere ao sentimento de tristeza). O que aconteceu? Por vergonha, tentei disfarçar. Mas ele insistiu e eu contei. Foi a primeira vez na vida em que experimentei a sensação física de "botar os demônios pra fora". No dia seguinte, quando o ônibus da escola se aproximou da casa do menino chantageador, não me vieram a taquicardia, a angústia. Ao me estender a mão, em cobrança da bala extorquida, ele ouviu meu primeiro discurso de improviso. Duas frases, apenas:
- Meu pai me disse que hoje não tem bala. E que eu e você vamos contar tudo isso para a Diretora.
A extorsão acabou. E começou um novo ciclo de minha infância. Todos os que ouviram essa história, nos últimos 40 anos, dividem a perplexidade entre minha ingenuidade e a precocidade do menino chantagista.
Para mim, hoje, pai de três crianças, o mais relevante ainda é o olhar de meu pai.
(William Bonner. In: Luís Colombini. Aprendi com meu pai. São Paulo: Saraiva. p. 235.)
1. O texto lido é o relato de um episódio vivido pelo narrador.
a. Em que fase da vida do narrador o episódio ocorreu?
b. Em que cidade ele aconteceu?
c. Onde se passaram os eventos que fizeram parte do episódio?
2. Releia estes trechos do texto:
I. "Morava no Tatuapé, [...] Ia e voltava num ônibus escolar"
II. "Não os vejo mais nas ruas."
III. "Contou uma piada e eu sorri."
IV. "eu emendei, ogulhoso, o que me ocorreu de mais hilariante. Tinha ouvido de minha irmã mais velha"
V. "Eu vou contar para a Diretora"
VI. "Consequências desastrosas que aquilo teria se chegasse aos ouvidos da Diretora"
Indique, em seu caderno, o trecho em que a(s) forma(s) verbal(is) destacada(s) se refere(m):
a. a uma ação passada, ocorrida antes de outra, também passada;
b. a ações começadas e terminadas pontualmente no passado;
c. a uma ação futura;
d. a uma ação que depende do cumprimento de uma condição;
e. a uma ação no presente;
f. a ações passadas que ocorreram durante um período mais longo de tempo.
3. Na fala do pai do narrador que é reproduzida no relato, há dois trechos que estão entre parênteses. Veja:
"- Cuco (é como me chama), você anda meio macambúzio (é como se refere ao sentimento de tristeza). O que aconteceu?"
a. Quais formas verbais indicam que esses trechos estão no presente, em relação ao narrador?
b. Qual a função desses comentários do narrador, no relato?
c. Levante hipóteses: Por que essas afirmações se referem ao presente e não ao passado?
4. O relato em estudo foi escrito em uma linguagem de acordo com a norma-padrão, mas, em alguns momentos, o narrador procura se aproximar do interlocutor, lançando mão de determinados recursos. Identifique, nos trechos abaixo, a estratégia utilizada pelo autor para se aproximar de seus leitores.
a. "Ia e voltava num ônibus escolar, daqueles que tinham uma porta só, na frente, ao lado do motor barulhento."
b. "eu já estava num banco, quieto como uma ostra"
c. "começou a tagarelar"
5. Releia este trecho:
Foi a primeira vez na vida em que experimentei a sensação física de "botar os demônios pra fora".
Levante hipóteses: Por que a expressão "botar os demônios pra fora" está entre aspas?
6. O penúltimo parágrafo do texto se inicia com a afirmação "A extorsão acabou". Discuta com os colegas e o professor e levante hipóteses: O que fez com que a chantagem tivesse fim?
7. O texto lido foi extraído de um livro intitulado Aprendi com meu pai. Discuta com os colegas e o professor: O que o narrador desse relato aprendeu com o pai?
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