Abraçando árvore
Não era uma felicidade eufórica, dessas de gritar "Urru!", estava mais pra uma brisa de contentamento, como se eu bebesse vinho branco à beira-mar ou lesse Rubem Braga na varanda de um sítio.
Eu tinha acordado cedo naquela sexta - e acordar cedo sempre me predispõe à felicidade. O trabalho havia rendido bem e, antes do fim da manhã, já tinha acabado de escrever tudo o que me propusera para o dia. À uma, fui almoçar com o meu editor. Ele estava com alguns capítulos do meu livro novo desde dezembro e eu temia que não tivesse gostado. Gostou. Fez alguns reparos com que concordei. Comemos um peixe na brasa - peixe e brasa também costumam me predispor à felicidade - e como era sexta-feira, e como somos amigos, e como comemorávamos essa pequena alegria que é um trabalho andar bem, uma parceria funcionar, brindamos com vinho branco - não à beira-mar, mas à beira do Cemitério da Consolação, que pode não ter a grandeza de um Atlântico, mas também tem lá os seus pacíficos encantos.
Saí andando meio emocionado, meio sem rumo pela tarde ensolarada e quando vi estava em frente à paineira da Biblioteca Mario de Andrade. É uma árvore gigante, que provavelmente já estava ali antes do Mario de Andrade nascer, continuou ali depois de ele morrer e continuará ali depois que todos os 18 milhões de habitantes que hoje perambulam pela cidade de São Paulo estiverem abaixo de suas raízes. Talvez tenha sido o assombro com essa longevidade, talvez acordar cedo, talvez os elogios ao livro e o vinho certamente colaborou: fato é que senti uma súbita vontade de abraçar aquela árvore.
Acho importante deixar claro, inclemente leitor, que não sou do tipo que abraça árvore. Na verdade, sou do tipo que faz piada com quem abraça árvore. Se me contassem, até a última sexta, que algum amigo meu foi visto abraçando uma paineira na rua da Consolação eu diria, sem pestanejar: enlouqueceu. Mas...
Não haveria nada de místico no abraço. Eu não achava que a paineira iria me emprestar qualquer "energia", nem que ela sugaria de minh'alma possíveis toxinas metafísicas. Era algo simbólico como atirar uma rosa ao mar dia 31 de dezembro, uma mínima inflexão na correria: aí está você, imóvel e longeva, aqui estou eu, ágil e breve, duas soluções do acaso para a soma de elementos da tabela periódica - e ela seguiria ali, com sua fotossíntese, eu seguiria adiante, com minhas caraminholas.
Olhei prum lado. Olhei pro outro. Tomei coragem e foi só sentir o rosto tocar o tronco para ouvir: "Antonio?!". Era meu editor.
Foram dois segundos de desespero durante os quais contemplei o distrato do livro, a infâmia pública, o alcoolismo e a mendicância, mas só dois segundos, pois meu inconsciente, consciente do perigo, me lançou a ideia salvadora. "Uma braçada", disse eu, girando pra esquerda e envolvendo a árvore novamente, "duas braçadas e... Três". Então encarei, seguro, meu possível verdugo: "Três braçadas dá o que? Uns cinco metros de perímetro? Tava medindo pra descrever, no livro. Tem uma parte mais no fim em que essa paineira é importante."
Colou. Nos despedimos. Ele foi embora prum lado, a minha felicidade pro outro e agora estou aqui, já noite alta desta sexta-feira, tentando enfiar a todo custo um tronco de quase dois metros de diâmetro num livro em que, até então, não havia nem uma samambaia.
(Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/colunas/antonioprata/2016/ 01/1730364-abracando-arvore.shtml. Acesso em: 5/3/2016.)
1. O autor conta, em seu texto, sobre um dia específico de sua vida.
a. Qual era o estado de espírito do autor naquele dia?
b. A que acontecimentos ele atribui tal estado de espírito?
c. Qual atitude inusitada ele tomou levado por esse estado de espírito?
2. Ao decidir realizar um ato julgado por ele mesmo como inusitado, o autor foi surpreendido por seu editor.
a. Qual foi a reação do autor nesse momento e o que ele fez para sair da situação embaraçosa?
b. Qual problema essa atitude trouxe para ele?
3. Esse texto foi publicado em um jornal de grande circulação. Tendo em vista a história contada, responda:
a. Qual nova função pode assumir esse texto, além de entreter os leitores?
b. Levante hipóteses: O problema mencionado pelo autor no último parágrafo permanecerá após a circulação desse texto?
4. Observe as seguintes construções empregadas no texto:
"sempre me predispõe"
"tudo o que me propusera"
"costumam me predispor"
"Se me contassem"
"iria me emprestar"
"me lançou a ideia"
"Nos despedimos."
a. O que há de comum entre todas elas no que diz respeito à posição do pronome oblíquo?
b. Discuta com os colegas e o professor: Em alguma dessas ocorrências, ao produzir o mesmo enunciado, você colocaria o pronome em lugar diferente?
5. Embora no português falado atualmente no Brasil (e escrito em situações informais) os pronomes sejam majoritariamente colocados na posição em que estão no texto lido, há outras maneiras de explorar essa colocação.
Discuta com os colegas e o professor e levante hipóteses: Quais das opções a seguir são consideradas adequadas à norma-padrão segundo a gramática normativa?
sempre predispõe-me
tudo o que propuse-me-ra
tudo o que propusera-me
costumam predispor-me
ir-me-ia emprestar
iria emprestar-me
lançou-me a ideia
Despedimo-nos
6. Encontre no texto outros trechos que comprovem a opção do autor de empregar uma linguagem bastante informal, próxima da fala.
Fonte: Português: Linguagens
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