sábado, 12 de junho de 2021

Atividade sobre prosa do Romantismo a partir de "Memórias de um Sargento de Milícias"


Leia, a seguir, um trecho do terceiro capítulo de "Memórias de um Sargento de Milícias", do escritor do Romantismo Manuel Antônio de Almeida, no qual é narrada a chegada de Leonardo à casa de seu padrinho logo depois de ter sido abandonado pelos pais.

Despedida às travessuras

O Leonardo abandonara de uma vez para sempre a casa fatal onde tinha sofrido tamanha infelicidade; [...]

O pequeno, enquanto se achou novato em casa do padrinho, portou-se com toda a sisudez e gravidade; apenas porém foi tomando mais familiaridade, começou a pôr as manguinhas de fora.

Apesar disto porém captou do padrinho maior afeição, que se foi aumentando de dia em dia, e que em breve chegou ao extremo da amizade cega e apaixonada. Até nas próprias travessuras do menino, as mais das vezes malignas, achava o bom do homem muita graça; não havia para ele em todo o bairro rapazinho mais bonito, e não se fartava de contar à vizinhança tudo o que ele dizia e fazia; às vezes eram verdadeiras ações de menino malcriado, que ele achava cheio de espírito e de viveza; outras vezes eram ditos que denotavam já muita velhacaria para aquela idade, e que ele julgava os mais ingênuos do mundo.

Era isto natural em um homem de uma vida como a sua; tinha já 50 e tantos anos, nunca tinha tido afeições; passara sempre só, isolado; era verdadeiro partidário do mais decidido celibato. Assim à primeira afeição que fora levado a contrair sua alma expandiu-se toda inteira, e seu amor pelo pequeno subiu ao grau de rematada cegueira. Este, aproveitando-se da imunidade em que se achava por tal motivo, fazia tudo quanto lhe vinha à cabeça.

Umas vezes sentado na loja divertia-se em fazer caretas aos fregueses quando estes se estavam barbeando. Uns enfureciam-se, outros riam sem querer; do que resultava que saíam muitas vezes com a cara cortada, com grande prazer do menino e descrédito do padrinho. Outras vezes escondia em algum canto a mais afiada navalha do padrinho, e o freguês levava por muito tempo com a cara cheia de sabão mordendo-se de impaciência enquanto este a procurava; ele ria-se furtiva e malignamente. Não parava em casa coisa alguma por muito tempo inteira; fazia andar tudo numa poeira; pelos quintais atirava pedras aos telhados dos vizinhos; sentado à porta da rua, entendia com quem passava e com quem estava pelas janelas, de maneira que ninguém por ali gostava dele. O padrinho porém não se dava disto, e continuava a querer-lhe sempre muito bem. Gastava às vezes as noites em fazer castelos no ar a seu respeito; sonhava-lhe uma grande fortuna e uma elevada posição, e tratava de estudar os meios que o levassem a esse fim. Eis aqui pouco mais ou menos o fio dos seus raciocínios. Pelo ofício do pai... (pensava ele) ganha-se, é verdade, dinheiro quando se tem jeito, porém sempre se há de dizer: - ora, é um meirinho!... Nada... por este lado não... Pelo meu ofício... verdade é que eu arranjei-me (há neste arranjei-me uma história que havemos de contar), porém não o quero fazer escravo dos quatro vinténs dos fregueses... Seria talvez bom mandá-lo ao estudo... porém para que diabo serve o estudo? Verdade é que ele parece ter boa memória, e eu podia mais para diante mandá-lo a Coimbra... Sim, é verdade... eu tenho aquelas patacas; estou já velho, não tenho filhos nem outros parentes... mas também que diabo se fará ele em Coimbra? licenciado não: é mau ofício; letrado? era bom... sim, letrado... mas não; não, tenho zanga a quem me lida com papéis e demandas... Clérigo?... um senhor clérigo é muito bom... é uma coisa muito séria... ganha-se muito... pode vir um dia a ser cura. Está dito, há de ser clérigo... ora, se há de ser: hei de ter ainda o gostinho de o ver dizer missa... de o ver pregar na Sé, e então hei de mostrar a toda esta gentalha aqui da vizinhança que não gosta dele que eu tinha muita razão em lhe querer bem. Ele está ainda muito pequeno, mas vou tratar de o ir desasnando aqui mesmo em casa, e quando tiver 12 ou 14 anos há de me entrar para a escola.

Tendo ruminado por muito tempo esta ideia, um dia de manhã chamou o pequeno e disse-lhe:

- Menino, venha cá, você está ficando um homem (tinha ele 9 anos); é preciso que aprenda alguma coisa para vir um dia a ser gente; de segunda-feira em diante (estava em quarta-feira) começarei a ensinar-lhe o b-a, ba. Farte-se de travessuras por este resto da semana.
O menino ouviu este discurso com um ar meio admirado, meio desgostoso, e respondeu:

- Então eu não hei de ir mais ao quintal, nem hei de brincar na porta?

- Aos domingos, quando voltarmos da missa...

- Ora, eu não gosto da missa.

O padrinho não gostou da resposta; não era bom anúncio para quem se destinava a ser padre; mas nem por isso perdeu as esperanças.
[...]

1. A obra de Manuel Antônio de Almeida retrata o cotidiano de determinada classe social do Rio de Janeiro na primeira metade do século XIX. De acordo com o trecho em estudo, qual é essa classe social? Justifique sua resposta.

2. No capítulo, são descritas algumas características de Leonardo quando garoto.
a. A caracterização do protagonista se afasta da visão idealizada que os românticos tinham da infância. Explique essa afirmação com elementos do texto.

b. Tanto na infância quanto na vida adulta, o protagonista é, com frequência, alvo de contrariedades e antipatias e também de simpatias e favores. De que modo isso se apresenta no texto em estudo?

c. Leonardo é considerado pela crítica o primeiro grande malandro da literatura brasileira. Tendo em vista essa informação e as respostas anteriores, conclua: Que elementos do texto já apontam para o perfil de malandro do protagonista?

3. O barbeiro faz planos para o futuro de Leonardo.
a. O pai de Leonardo era meirinho. Por que o barbeiro rejeita a possibilidade de Leonardo seguir essa profissão?

b. A realização pessoal no trabalho era um ideal liberal-burguês presente nos romances românticos europeus. Os planos do barbeiro para seu afilhado se orientam por esse ideal? Justifique sua resposta com elementos do texto.

c. Entre as alternativas de futura ocupação que imagina para seu afilhado, o barbeiro se decide pela de clérigo. Que efeito de sentido essa decisão constrói no texto em estudo?

4. Leia o trecho a seguir, também do terceiro capítulo da obra.

"O menino, como já dissemos, estremecera de prazer ao ver aproximar-se a procissão. Desceu sorrateiramente a soleira, e sem ser visto pelo padrinho colocou-se unido à parede entre as duas portas da loja, levantando-se na ponta dos pés para ver mais ao seu gosto."

No trecho, há uma intrusão do narrador na narrativa.

a. De que modo se dá essa intrusão? Justifique sua resposta com elementos do texto.

b. Que efeito de sentido resulta desse recurso?

5. Releia estes trechos:

- "O pequeno [...] apenas porém foi tomando mais familiaridade, começou a pôr as manguinhas de fora."
- "sentado à porta da rua, entendia com quem passava e com quem estava pelas janelas"
- "O menino ouviu este discurso com um ar meio admirado, meio desgostoso"

a. Em Memórias de um sargento de milícias, a linguagem se caracteriza por um estilo espontâneo, associado a registros informais. Qual trecho evidencia tal característica? Justifique sua resposta.

b. No segundo trecho, qual sentido a expressão entendia com quem passava adquire, no contexto em que está inserida?


Fonte: Português Contemporâneo: Diálogo, Reflexão e Uso

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