segunda-feira, 11 de abril de 2022

Atividade sobre literatura portuguesa a partir do "Auto da barca do inferno", de Gil Vicente



O texto que você vai ler a seguir é um trecho do "Auto da barca do inferno", de Gil Vicente.

Na cena, há duas barcas, uma comandada pelo Diabo e outra por um Anjo, nas quais serão conduzidos ao destino final aqueles que acabaram de deixar a vida na Terra. No trecho, o Corregedor e o Procurador chegam à barca do inferno.

[...]
Vem um Corregedor, carregado de feitos*, e, chegando à barca do Inferno, com seu processo na mão, diz:
CORREGEDOR Hou da barca!
DIABO Que quereis?
CORREGEDOR Está aqui o senhor juiz!
DIABO Oh amador de perdiz,
quantos feitos que trazeis!
CORREGEDOR No meu ar conhecereis
que sem gostos trago cá.
DIABO Como o direito vai lá?
CORREGEDOR Nestes feitos o vereis.
DIABO Ora, pois, entrai, veremos
que diz aí nesse papel...
CORREGEDOR E aonde vai o batel?
DIABO No Inferno vos poremos.
CORREGEDOR Como? À terra dos demos
há de ir um corregedor?
DIABO Santo descorregedor,
embarcai, e remaremos!
[...]
CORREGEDOR Hou! Videtis qui petatis
Super jure majestatis
tem vosso mando vigor?*
DIABO Quando éreis ouvidor
Nonne accepistis rapina?*
Pois ireis pela bolina
onde nossa mercê for*...
Oh! Que isca esse papel
para um fogo que eu sei!
CORREGEDOR Domine, memento mei!*
DIABO Non est tempus, Bacharel!
Imbarquemini in batel
quia judicastis malitia.*
CORREGEDOR Semper ego justitia
fecit, e bem por nível.*
DIABO E as peitas* dos judeus
que a vossa mulher levava?
CORREGEDOR Isso eu não o tomava,
eram lá percalços seus.
Não são peccatus meus,
peccavit uxore mea.*
DIABO Et vobis quoque cum ea,
não temuisistis Deus.*
A largo modo acquiristis
sanguinis laboratorum,
ignorantispeccatorum.
Ut quid eos non audistis?*
CORREGEDOR Vós, Arrais, nonne legistis
que dar quebra os penedos?
Os direitos estão quedos,
si aliquid tradidistis...*
DIABO Ora, entrai nos negros fados!
Ireis ao lago dos cães
e vereis os escrivães
como estão tão prosperados.
[...]
Estando o Corregedor nesta prática com o Arrais infernal, chegou um Procurador carregado de livros, e diz o Corregedor ao Procurador:
CORREGEDOR Oh Senhor Procurador!
PROCURADOR Beijo-vo-las mãos, Juiz!
Que diz esse Arrais? Que diz?
DIABO Que sereis bom remador.
Entrai, bacharel doutor,
e ireis dando na bomba*.
PROCURADOR E este barqueiro zomba?
Brincais de zombador?
Essa gente que aí está
para onde a levais?
DIABO Para as penas infernais.
PROCURADOR Dix! Não vou eu para lá!
Outro navio está cá
muito melhor assombrado.
DIABO Ora estás bem arrumado!
Entra, infeliz de hora-má!
CORREGEDOR Confessaste-vos, doutor?
PROCURADOR Bacharel sou... Dou-me ao demo!
Não cuidei que era extremo,
nem de morte minha dor.
E vós, senhor Corregedor?
CORREGEDOR Eu muito bem me confessei,
mas tudo quanto roubei
encobri ao confessor...
PROCURADOR Porque, se o não tornais*,
não vos querem absolver,
e é muito mau devolver
depois que o apanhais.
DIABO Pois porque não embarcais?
CORREGEDOR Quia esperamus in Deo.*
DIABO Imbarquemini in barco meo...*
Para que sperastis* mais?
[...]
(São Paulo: Saraiva, 2008. p. 34-8. Col. Clássicos Saraiva.) 

# Questões:
1. As personagens do texto lido são tipos, ou seja, figuras sem profundidade psicológica nas quais estão reunidos os vícios e as virtudes da profissão, da classe ou até do estrato social a que pertencem.
a. Para que o espectador pudesse identificar facilmente a personagem-tipo, esta aparecia em cena acompanhada de elementos distintivos, como objetos ou animais. Quais são os elementos que distinguem as personagens do texto lido?

b. A linguagem também funciona como elemento distintivo e caracterizador de determinados tipos. De que maneira o Corregedor se expressa ao longo do texto?

c. Nas falas do Corregedor, o autor subverte de propósito o léxico e as normas do latim, uma língua que ainda desfrutava, no século XVI, de muito prestígio. Que efeito isso provoca no texto?

d. Conclua: O Corregedor e o Procurador representam profissionais que atuam em que área? Qual é a principal função desse grupo de profissionais?

2. O Corregedor, ao ser recebido pelo Diabo, estranha que seu destino seja a "terra dos demos".
a. Por que, nesse momento, o Corregedor julga-se livre do inferno?

b. Visando escapar da barca infernal, o Corregedor questiona o poder do Diabo. Como ocorre esse questionamento?

3. No Auto da barca do inferno, as almas passam por um julgamento antes de embarcarem em direção ao seu destino final. Nesse julgamento, o Diabo desempenha, simultaneamente, as funções de acusador e de juiz, enquanto as almas defendem a própria causa.
a. O Diabo faz três acusações ao Corregedor. Quais são elas?

b. Na sua opinião, a argumentação que o Corregedor utiliza para se defender confirma ou desmente as acusações do Diabo? Justifique sua resposta.

c. Diante dos argumentos do Corregedor, qual é o veredicto do Diabo?

4. O julgamento das almas, as condenações e o ato da confissão são elementos característicos da concepção de mundo cristã e da religiosidade dominantes na cultura medieval.
a. Nesse contexto, qual é a provável consequência de o Procurador não ter se confessado antes de morrer?

b. O Corregedor, ao confessar-se antes de morrer, não revelou o que roubara durante a vida. O que o levou a proceder assim?

c. O que esse procedimento do Corregedor revela a respeito do caráter dele?

5. O teatro de Gil Vicente se expressa em linguagem poética. É composto em versos, nos quais rimas, ironias, eufemismos, antíteses e neologismos (criação de uma expressão ou de uma palavra nova) constituem recursos para a construção de uma sátira mordaz, focada na crítica aos vícios humanos.
a. No trecho lido, o Diabo se refere ironicamente ao corregedor como "amador de perdiz". Por que ele usa essa expressão?

b. O Diabo chama o Corregedor de "descorregedor". Qual é o significado desse neologismo na cena?

c. Eufemismo é o emprego de uma palavra ou de uma expressão no lugar de outra que é considerada desagradável, com o fim de causar menos impacto, como, por exemplo, o uso de "descansar" no lugar de "morrer". No trecho lido, que eufemismo o Diabo emprega para se referir ao inferno?

d. O teatro de Gil Vicente faz uso das métricas mais utilizadas na poesia medieval. Faça a escansão de alguns versos do trecho lido e identifique o tipo de verso empregado pelo dramaturgo nesse auto.

6. O "Auto da barca do inferno" é um auto de moralidade, ou seja, é uma peça em que a dramatização visa ensinar preceitos morais por meio da crítica aos vícios, hábitos e costumes.
a. Qual é a crítica feita por Gil Vicente na cena lida?

b. Na sua opinião, os problemas denunciados e criticados na cena se limitam à sociedade portuguesa do século XVI ou ainda ocorrem na atualidade? Justifique sua resposta.

Fonte: Português: Linguagens, William Cereja et al.

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