sexta-feira, 15 de setembro de 2017
Interpretação de texto sobre Infância Perdida (problema social)
Uma criança vai para a escola, descalça. Outra criança vende balas no semáforo de uma cidade grande. Outra acorda às 4 h da madrugada para trabalhar na lavoura. Outra, jogando bola no campinho, sonha ser jogador de futebol. O que é ser criança no nosso país?
O menino
Vou fazer um apelo. É o caso de um menino desaparecido.
Ele tem 11 anos, mas parece menos; pesa 30 quilos, mas parece menos; é brasileiro, mas parece menos.
É um menino normal, ou seja: subnutrido, desses milhares de meninos que não pediram pra nascer; ao contrário: nasceram pra pedir.
Calado demais pra sua idade, sofrido demais pra sua idade, com idade demais pra sua idade. É, como a maioria, um desses meninos de 11 anos que ainda não tiveram infância.
Parece ser menor carente, mas, se é, não sabe disso. Nunca esteve na Febem, portanto, não teve tempo de aprender a ser criança-problema. Anda descalço por amor à bola.
Suas roupas são de segunda mão, seus livros são de segunda mão e tem a desconfiança de que a sua própria história alguém já viveu antes.
Do amor não correspondido pela professora, descobriu que viver dói. Viveu cada verso de "Romeu e Julieta", sem nunca ter lido a história.
Foi Dom Quixote sem precisar de Cervantes e sabe, por intuição, que o mundo pode ser um inferno ou uma badalação, dependendo se ele é visto pelo Nelson Rodrigues ou pelo Gilberto Braga.
De seu, tinha uma árvore, um estilingue zero quilômetro e um pássaro preto que cantava no dedo e dormia em seu quarto.
Tímido até a ousadia, seus silêncios gritavam nos cantos da casa e seus prantos eram goteiras no telhado de sua alma.
Trajava, na ocasião em que desapareceu, uns olhos pretos muito assustados e eu não digo isso pra ser original: é que a primeira coisa que chama a atenção no menino são os grandes olhos, desproporcionais ao tamanho do rosto.
Mas usava calças curtas de caroá, suspensórios de elástico, camisa branca e um estranho boné que, embora seguro pelas orelhas, teimava em tombar pro nariz.
Foi visto pela última vez com uma pipa na mão, mas é de todo improvável que a pipa o tenha empinado. Se bem que, sonhador do jeito que ele é, não duvido nada.
Sequestrado, não foi, porque é um menino que nasceu sem resgate.
Como vocês veem, é um menino comum, desses que desaparecem às dezenas todos os dias.
Mas se alguém souber de alguma notícia, me procure, por favor, porque... ou eu encontro de novo esse menino que um dia eu fui, ou eu não sei o que vai ser de mim.
(Chico Anysio. Disponível em: http://oglobo.globo.com/cultura/um-autorretrato-inedito-de-chico-anysio-4428439. Acesso em: 27/6/2014.)
Glossário:
Caroá: tecido rústico.
Dom Quixote: personagem da obra do escritor espanhol Miguel de Cervantes, caracterizada como sonhadora e delirante.
Febem: sigla de Fundação Estadual para o Bem-Estar do Menor; hoje, Fundação Casa (Centro de Atendimento Socioeducativo ao Adolescente).
Nelson Rodrigues: escritor e dramaturgo brasileiro.
Gilberto Braga: autor de telenovelas brasileiro.
Romeu e Julieta: peça teatral de William Shakespeare em que dois adolescentes são impedidos de viver o amor em razão da inimizade entre suas famílias.
# Exercícios:
1. O texto é construído como se fosse um anúncio de busca de pessoa desaparecida.
a) Em que trecho isso fica explícito?
b) Em geral, o que caracteriza um texto desse tipo?
2. No texto em estudo:
a) Quais são as características do menino?
b) Como se trajava? Faça um levantamento do que o menino usava como vestuário.
c) O que fazia quando foi visto pela última vez?
d) Deduza: Qual era a condição social do menino?
3. O texto faz outras caracterizações do menino, além das físicas.
a) Que elementos dizem respeito:
- ao mundo infantil do menino?
- ao romantismo precoce?
- à concepção do mundo?
b) Referindo-se ao menino, o narrador diz: "sonhador do jeito que ele é". Qual personagem citada no texto também é um sonhador?
4. O narrador também faz referências ao menino utilizando expressões como estas: "subnutrido", "nasceram pra pedir", "ainda não tiveram infância", "sem resgate". Que visão da infância se depreende desses trechos: feliz, bem-cuidada ou desprotegida e carente?
5. Aos poucos, vai ficando claro o tema do texto e sua verdadeira intencionalidade.
a) Qual é o tema do texto ?
b) Apesar de o texto abordar um grave problema da realidade brasileira, ele não perde o humor. Explique como se constrói o humor nestes trechos:
"pesa 30 quilos, mas parece menos; é brasileiro, mas parece menos"
"com idade demais pra sua idade"
"é de todo improvável que a pipa o tenha empinado"
6. No último parágrafo há uma revelação importante para o desfecho do texto.
a) Qual é a revelação?
b) Nesse sentido, o menino procurado se perdeu no espaço ou no tempo? Explique.
7. O narrador aponta todas as carências do menino que ele foi, mas, no final do texto, diz: "ou eu encontro de novo esse menino que um dia eu fui, ou eu não sei o que vai ser de mim".
a) Interprete: Por que o narrador deseja encontrar o menino que ele foi?
b) O desaparecimento do menino deve ser visto como um fato concreto ou ele pode representar um desaparecimento no sentido figurado? Explique.
8. O texto "O menino" contém humor e lirismo. Contudo, além de provocar o riso e a emoção, ele também cumpre outra finalidade. Qual é ela?
Fonte: Português: Linguagem
# RESPOSTAS (GABARITO)
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